A SAGA DAS PRIMEIRAS MEDALHAS OLÍMPICAS CONQUISTADAS PELO DO BRASIL

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Bianca Daga, do ESPN.com.br

Até a véspera dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, o ESPN.com.br trará quinzenalmente o quadro ‘Lado B das Olimpíadas’, com histórias que vão muito além do esporte. Personagens históricos dentro e fora das competições, eventos que marcaram época e assuntos que merecem reflexão. Em sua 4ª edição, a série traz a história do primeiro ouro olímpico brasileiro, conquistado por Guilherme Paraense, na primeira vez que o País disputou os Jogos Olímpicos. Depois de uma conturbada viagem de navio até a Bélgica, ele e os outros atiradores usaram armas e munição emprestadas para competir.

“Meu avô já era campeão brasileiro, carioca. Já tinha títulos. Então, não foi um acaso! As pessoas falam como se tivesse sido uma sorte muito grande, e isso me incomoda. Parece que ele chegou lá e foi campeão. Mas não! Ele tinha capacidade! Ninguém se aventuraria em uma viagem dessas por acaso. Ele sempre foi fora de série, tinha muito talento. Nunca foi só mais um atirador. E eles tiveram infortúnios durante o trajeto que psicologicamente abalariam qualquer um. Ou pelo menos as pessoas normais. Porque acho que eles eram acima da média. Qualquer um teria se rendido aos fatos.”

De fato, não foi por acaso. E mais ainda, não foi nem um pouco fácil a viagem de 26 dias de Guilherme Paraense, o brasileiro que conquistou a primeira medalha de ouro olímpica do Brasil, nos Jogos de Antuérpia, na Bélgica, no dia 3 de agosto de 1920, no tiro esportivo – aliás, era a primeira vez que o País participava da maior competição esportiva do mundo e, logo de cara, já subiu ao lugar mais alto do pódio, além de ter conquistado uma prata e um bronze, na mesma modalidade.

Quem contou um pouco mais sobre a aventura do avô foi Valéria Paraense, em entrevista ao ESPN.com.br. Nascido em Belém do Pará no dia 25 de junho de 1884, Guilherme Paraense começou a frequentar a Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro, ainda pequeno.

Mais tarde, tornou-se tenente do Exército Brasileiro, ingressou na prática do tiro esportivo, foi diversas vezes campeão carioca e brasileiro no fim da década de 1910 e fundou o Revólver Clube-RJ, em 1914. O prestígio lhe rendeu o convite para integrar a delegação brasileira que iria aos Jogos de Antuérpia.

A saga da viagem

E foi aí que a aventura começou. Ele e mais 20 atletas nas modalidades natação, polo aquático, saltos ornamentais, remo e tiro esportivo embarcaram no navio Curvelo no dia 1º de julho de 1920, formalmente representados pela Confederação Brasileira de Desportos (CDB). Fundado seis anos antes, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) não organizou a viagem. Os atletas se uniram e pagaram as despesas do próprio bolso.

“Não havia naquela época o que existe hoje em termos de patrocínio. Então, eles foram por conta própria. Não existia esse tipo de organização que existe hoje para uma Olimpíada. Pelo menos no Brasil não. Então, tiveram dificuldades e tiraram dinheiro do bolso para poderem ir”, contou Valéria.

A equipe brasileira de tiro era composta por Afrânio Costa (capitão), Sebastião Wolf, Dario Barbosa, Fernando Soledade, Demerval Peixoto, Mario Maurity e Guilherme Paraense. Para as competições seletivas e as provas preparatórias, os atiradores receberam apoio do Exército Brasileiro e de alguns colaboradores, entre eles Faustin Havelange (pai de João Havelange, ex-presidente da Fifa), proprietário da casa de armas Laporte. Antes de embarcar, ouviam que não iam conseguir resultado algum.

O cenário no navio era o pior possível. Nível 3ª classe, camarotes pequenos e sem ar. A opção foi apelar para o que era menos pior. “Eles preferiam dormir no bar, no chão. Mas para isso só podiam deitar depois que o último cliente saísse e precisavam acordar cedinho para treinar. E eles treinavam no convés. A comida também era pouca e ruim. Muitos passavam mal.”, relatou Valéria.

Quando chegaram à Ilha da Madeira, em Portugal, os atiradores ficaram sabendo que só chegariam à Antuérpia no dia 5 de agosto, e as disputas de tiro começariam duas semanas antes disso – na verdade, tinham sido adiadas, mas eles não sabiam. Para chegarem a tempo, desembarcaram no porto seguinte, em Lisboa, e pegaram um trem em vagões abertos, sofrendo com sol, vento e chuva.

Armas e munições roubadas

Mas esses eram os menores dos problemas. Assim que passaram pela Alfândega para entrar na Bélgica, os brasileiros tiveram suas armas e munições confiscadas. Afinal, apenas dois anos antes a Europa vivia o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como convencer os policiais de que um o grupo armado apenas iria competir? De qualquer modo, cada um conseguiu guardar uma arma. No entanto, chegando em Bruxelas, foram roubados.

O que restou quando chegaram em Antuérpia? Uma arma e 200 balas calibre 38, quando cada atleta precisaria de 75. E mais aventura estava por vir. Ainda faltava ir ao Campo de Baverloo, onde aconteceriam os treinos e as disputas. Como? A pé, um percurso de 18 quilômetros. E finalmente chegando lá, precisaram se instalar nos piores alojamentos, já que praticamente todas as equipes haviam chegado e ocupado os melhores lugares.

Norte-americanos, parceiros?

Daí para frente, a sorte, enfim, começou a mudar. O capitão Afrânio Costa se enturmou e jogou xadrez com a delegação norte-americana, que se compadeceu e cedeu parte de seu moderno arsenal: 2.000 cartuchos. Porém, a única arma que os brasileiros tinham em mãos não dava esperança de qualquer resultado. Depois de ver as primeiras performances do Brasil – ruins – os norte-americanos emprestaram duas armas, especialmente desenvolvidas para a equipe dos Estados Unidos pela fábrica Colt.

O talento, então, prevaleceu. Afrânio Costa conseguiu medalha de prata nos 50 m de pistola livre (489 pontos, contra 496 do campeão Karl Frederick/EUA), marca que também deu ao Brasil a medalha de bronze por equipes na prova, atrás de Suécia (2º) e EUA( 1º). Os competidores, junto com Afrânio, foram Sebastião Wolf, Guilherme Paraense e Fernando Soledade. Olhando para trás e lembrando tudo o que tinha acontecido desde o dia 1º de julho, quando saíram de casa, sem dúvida já estava de bom tamanho.

Mas o melhor estava por vir. Um dia depois, em 3 de agosto de 1920, Guilherme Paraense marcou 274 pontos na pistola de tiro rápido, dos 300 possíveis, ficando apenas 2 à frente do segundo colocado, o norte-americano Raymond Bracken, um dos que jogavam xadrez com Afrânio e que se solidarizaram emprestando a arma. O avô de Valéria conquistava a primeira medalha de ouro do Brasil em Jogos Olímpicos e escrevia seu nome na história do esporte.

“Depois das provas, os americanos tentaram entrar com recurso, dizendo que meu avô não podia competir porque era militar e teria vantagem. Mas o Comitê Olímpico Internacional não aceitou. Isso não fazia sentido. Se fosse assim, todo militar atiraria bem e seria campeão olímpico. Ele não estava lá como militar. Antes, os americanos não questionaram nada e até emprestaram armas e munição porque não achavam que os brasileiros fossem ganhar alguma coisa”, revelou Valéria.

Herói esquecido?

A notícia sobre o feito histórico chegou ao Brasil dias depois e foi divulgada à moda dos anos 20. Em uma praça, a sirene do Jornal do Brasil tocou. Uma multidão se formou, e ouviu a notícia de que Guilherme Paraense era o primeiro medalhista olímpico de ouro, na primeira Olimpíada que o Brasil disputava.

Na volta da Europa – e por muito tempo – homenagens não faltaram. O atirador de Belém do Pará foi recebido pelo então presidente da República Epitácio Pessoa e ganhou uma placa de ouro comemorativa. Em 1989, ele foi homenageado pelo Exército Brasileiro, que batizou com o nome Polígono de Tiro Tenente Guilherme Paraense o conjunto de estandes de tiro da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no Rio de Janeiro. Além disso, anualmente é realizado em Resende um torneio com seu nome incluído no calendário brasileiro de tiro esportivo.

Os Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, tiveram selo em sua homenagem. Em 2013 e 2014, o revólver Colt disparado precisamente por Guilherme Paraense na conquista do ouro olímpico foi mostrado na exposição interativa do COB, “Jogos Olímpicos: Esporte, Cultura e Arte”, que passou São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, como aquecimento para a Olimpíada de 2016.

“Minha mãe diz que ele é um herói esquecido, e eu não concordo. Dentro do que era possível em termos de mídia naquela época, ele teve homenagem sim. Quando eles chegaram ao Rio de janeiro, tinha muita gente no porto. Depois, foi homenageado pelos atiradores. Era complicado ter o que tem hoje de informação em tempo real”, avaliou Valéria.

3 medalhas, as únicas na história do tiro esportivo

Com as três medalhas conquistadas, o Brasil terminou os Jogos de Antuérpia em 15º lugar, à frente de sete países: Austrália, Japão, Espanha, Grécia Luxemburgo, Tchecoslováquia e Nova Zelândia.

Guilherme Paraense continuou sendo militar do Exército e chegou ao posto de coronel, tendo ido à Revolução de 1930. Oito anos antes, foi campeão sul-americano de tiro esportivo. O pioneiro do ouro olímpico morreu aos 83 anos, de infarto, no dia 18 de abril de 1968.

O Brasil só voltou ao lugar mais alto do pódio em uma Olimpíada 30 anos depois da conquista de Guilherme Paraense, nos Jogos de Helsinque-Finlândia, com Adhemar Ferreira da Silva, no salto triplo. No tiro esportivo, no entanto, o País nunca mais conquistou uma medalha na competição. O melhor resultado depois do ouro, da prata e do bronze em 1920 foi com Delival da Fonseca Nobre, 4º colocado no tiro rápido em Los Angeles-1984.

Já nos Jogos Pan-Americanos, o Brasil tem resultados expressivos no tiro esportivo. Na última edição, em Guadalajara-2011, o País ganhou sete medalhas, uma de ouro e seis de bronzes. Para o de Toronto, no Canadá, que será disputado em julho, as principais chances estarão com Rodrigo Bastos, Filipe Fuzaro e Cassio Rippel. Para a Olimpíada do Rio de Janeiro, no ano que vem, os brasileiros já tem nove vagas garantidas, por sediarem o evento.

Como começou?

Prática centenária, o Tiro Esportivo teve origem na Europa – em países como a Alemanha, há clubes com mais de 500 anos de fundação. A popularidade do esporte cresceu em nações de língua inglesa com a criação de organizações de atiradores na Inglaterra, em 1859, e nos Estados Unidos, em 1871.

Para a entrada no programa olímpico, a disciplina teve como seu principal incentivador o Barão de Coubertin, fundador dos Jogos da Era Moderna. Campeão francês de pistola, ele incluiu o Tiro Esportivo já na primeira edição da competição, em 1896, em Atenas.

Em 1907, foi criada a Federação Internacional de Tiro Esportivo (ISSF, em inglês). Ao longo dos anos, o esporte apresentou mudanças significativas para ganhar popularidade: os eventos têm acompanhado as evoluções tecnológicas das armas de fogo, e os alvos passaram a ter um formato circular para não lembrar em nada animais ou pessoas.

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