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A HISTÓRIA DAS PRIMEIRAS MEDALHAS OLÍMPICAS CONQUISTADAS PELO BRASIL

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Há quase 100 anos, o país conquistava, na Antuérpia, em 1920, suas primeiras medalhas nos Jogos e via surgir, no tiro esportivo, o primeiro de nossos atletas de ouro

Em sua época de criança no Rio de Janeiro, a pequena Valéria Paraense Ferreira, hoje com 60 anos, vários deles dedicado à profissão de dentista, costumava passear ostentando um broche que chamava a atenção das pessoas, fossem elas adultas ou pequenas como ela. E sempre que alguém indagava por que ela o usava, a resposta enchia a menina de orgulho. “Eu tinha um broche que era um pequeno revólver. Quando alguém perguntava o que era aquilo, eu dizia que usava porque meu avô tinha conquistado uma medalha de ouro nas Olimpíadas no tiro esportivo. Eu dizia que ele era um campeão olímpico”, recorda Valéria.

Mais do que um herói para a neta, Guilherme Paraense tem lugar de destaque na galeria dos grandes atletas olímpicos do país. Em 1920, nos Jogos da Antuérpia, na Bélgica, os primeiros a contar com atletas brasileiros, Guilherme Paraense conquistou a primeira medalha olímpica de ouro para o Brasil. A façanha veio na prova de pistola de tiro rápido 25m. Guilherme somou 274 pontos, resultado que lhe garantiu o topo do pódio por apenas dois pontos de diferença em relação ao medalhista de prata, o norte-americano Raymond Bracken.

O triunfo de Paraense não foi o único momento de destaque do Brasil na Antuérpia. Antes de ele brilhar, o país já havia conquistado duas medalhas no tiro esportivo. Uma de prata, com Afrânio da Costa, na prova dos 50m de pistola livre; e um bronze, na prova de pistola 50m por equipes, com um time formado por Afrânio da Costa, Sebastião Wolf, Dario Barbosa, Guilherme Paraense e Fernando Soledade. Ainda hoje, 96 anos depois, o ouro de Guilherme Paraense e as outras medalhas de prata e bronze permanecem como as únicas do país na modalidade em Jogos Olímpicos.

Nascido em Belém, no dia 25 de junho de 1884, Guilherme Paraense sempre foi um amigão de Valéria. Ela acumulou diversas lembranças queridas nos 13 anos em que conviveu com o avô, até a morte dele, em 18 de abril de 1968, no Rio de Janeiro, aos 83 anos.

“Ele era muito parceiro e sempre foi bastante presente. Eu fui para a escola pela primeira vez já alfabetizada por ele. Ele me ensinou a ler, me ensinou a andar de patins, a andar de bicicleta… Eu vivia o dia inteiro na casa dele e, nos fins de semana, também ficava lá com meu avô e minha avó”, recorda Valéria.

Epopeia rumo à Bélgica
A primeira participação do Brasil em Jogos Olímpicos foi marcada por diversas aventuras que facilmente renderiam roteiro para filme. Cinco edições olímpicas já haviam sido disputadas quando o país enviou uma delegação de 21 atletas para competir na Antuérpia nas provas de natação, polo aquático, remo, saltos ornamentais e tiro esportivo.

Naquela época, cruzar o Atlântico e chegar a um país no Velho Continente era um desafio para poucos. E as condições, como viriam a descobrir Guilherme Paraense e seus colegas atletas, não eram nada fáceis.

A epopeia vivida pela delegação desde a saída do Brasil até a chegada à Antuérpia é retratada em detalhes pelo coronel da reserva Eduardo Ferreira. Nascido no Rio de Janeiro e atualmente vivendo em Fortaleza, Eduardo, 74 anos, é formado em educação física e por muitos anos foi atirador do Fluminense na prova de carabina. Ele é autor do livro “A história do Tiro Esportivo Brasileiro”, que deverá ser lançado antes dos Jogos Olímpicos do Rio, que começam no dia 5 de agosto.

Na obra, Eduardo narra a incrível saga que Guilherme Paraense e seus companheiros de time Afrânio da Costa, Dario Barbosa, Fernando Soledade, Sebastião Wolf, Demerval Peixoto e Mário Maurity protagonizaram para chegar à Bélgica e conquistar as três únicas medalhas olímpicas do Brasil na edição dos Jogos de 1920.

“O livro surgiu da seguinte maneira: Quando o doutor Afrânio da Costa faleceu (em junho de 1979, aos 87 anos), a viúva dele, dona Juracy, ligou para meu pai, que era diretor de tiro do Fluminense e atirador olímpico (Silvino Fernandes Ferreira disputou os Jogos de 1948, em Londres) dizendo que ela estava com todo o acervo do doutor Afrânio, um álbum com fotos, relatos e recortes de jornais, e queria entregá-lo para o Fluminense”, recorda Eduardo Ferreira.

“O doutor Afrânio tinha sido o primeiro diretor de tiro do Fluminense e conhecia bem o meu pai. Eles eram amigos. Então, a dona Juracy, para não perder toda essa documentação, ligou para meu pai e o pediu que ele desse um fim apropriado de modo que aquilo não se perdesse. Isso foi em 1979. Então meu pai me ligou e eu vi o material. Ali tinha a história todinha de como tinham sido os Jogos Olímpicos de 1920 e é isso que eu retrato com detalhes no livro”, relata o autor.

O brasil2016.gov.br teve acesso à obra de Eduardo Ferreira. Em um dos trechos, as anotações de Afrânio da Costa dão a dimensão do que ele, Guilherme e seus companheiros enfrentaram para chegar à Antuérpia antes mesmo de sair do Brasil.

“As dificuldades foram, sobretudo, de ordem estrutural, técnica e econômica”, dizem os relatos de Afrânio, que vivia em um tempo em que, ao contrário de hoje, ser um esportista não era sinônimo de glamour. “Na época, os atletas, de modo geral, contavam com o descrédito e a incompreensão de parte significativa da ‘intelectualidade brasileira’, que atacava o desporto pelos jornais e revistas, vendo nele ‘uma ameaça à juventude e à sua formação’, prestando-se mais aos ‘desocupados e vagabundos’”, escreveu Afrânio, que prossegue dando detalhes surpreendentes sobre como se deu a primeira parte da viagem.

“A delegação brasileira seguiu para a Europa no dia 1º de julho de 1920, sob a chefia do Dr. Roberto Trompowsky, a bordo do navio Curvelo, pertencente ao Lloyd Brasileiro. Deixava atrás de si as maledicências dos descrentes e dos invejosos, que se referiam às aspirações da equipe da seguinte forma: Não vão arranjar nem pro bife”, relata Afrânio.

“O Curvelo estava longe de ser um transatlântico de luxo. Tratava-se de um navio de 3ª classe, sem o mínimo conforto, com camarotes mais parecendo cubículos, sem ar, sem mobiliário e sem água. Diante disso, os atletas foram ao comandante Reis Júnior e pediram para dormir no bar, pois era mais amplo e mais arejado do que os camarotes. O comandante logo cedeu, porém, com a condição de que só poderiam utilizá-lo como dormitório após a saída do último freguês do bar. Após arranjarem uns cobertores, todos fizeram a viagem dormindo no chão”, prossegue Afrânio.

Armas emprestadas
O que se seguiu à penosa viagem de navio não representou alívio aos atletas. Na Ilha da Madeira, em Portugal, a turma do tiro esportivo foi surpreendida por uma notícia que causou desespero: a chegada à Antuérpia estava prevista para 5 de agosto. Entretanto, segundo os relatos de Afrânio, as últimas notícias recebidas no Brasil davam conta de que as provas de tiro começariam no dia 22 de julho.

Apavorados, os atiradores adotaram um plano para chegar mais rápido à Bélgica: iriam por terra, de trem. Após deixarem o navio em Lisboa e contando com a ajuda da Embaixada do Brasil em Portugal, os atletas encararam a viagem em vagões abertos, expostos ao vento, ao sol e à chuva.

Já na Antuérpia, descobriram que as provas de tiro seriam disputadas a 18 quilômetros da cidade belga, no Campo de Beverloo, área destinada às manobras do exército belga. Afrânio resumiu assim as condições em que ele e seus companheiros chegaram: “Foi com esse estado de corpo e espírito que os nossos atiradores, sem dormir e mal alimentados, debilitados ainda mais pelo frio, chegaram à Beverloo, a 26 de julho, ao meio-dia”. Por sorte, o início das provas foi adiado e eles puderam competir.

A história das medalhas ainda registra um episódio inusitado no caminho. Ao chegarem à Bélgica, antes de alcançarem a Antuérpia, Guilherme, Afrânio & Cia. foram roubados e perderam as munições, os alvos e grande parte das armas. Restou uma única arma para a prova de tiro livre. Percebendo isso, um oficial da equipe norte-americana que havia feito amizade com Afrânio auxiliou o grupo brasileiro com um gesto que foi determinante para a conquista das medalhas.

“A inferioridade da única arma livre que possuíamos em relação às aperfeiçoadíssimas dos nossos concorrentes não nos permitia ter esperança. Destaquei Soledade para atirar em primeiro lugar e o seu resultado ruim atestou imediatamente a inferioridade da arma, pois em revólver era um ótimo atirador. Nesta ocasião, o coronel Snyders, do exército americano e capitão da equipe de pistola livre (os americanos apresentaram uma equipe completa para cada arma, com 35 atiradores, além de 5 capitães de equipe, majores ou coronéis), me disse: ‘Sr. Costa, esta arma não vale nada, vou arranjar duas para os senhores, feitas especialmente para nós pela fábrica Colt’. E voltou pouco depois trazendo duas belíssimas armas. Retificadas as armas por ele próprio, entregou-as desejando melhor resultado”, narra Afrânio.

Para Eduardo Ferreira, o gesto do coronel Snyders foi grandioso. “Essa foi uma demonstração de solidariedade muito grande e isso foi determinante para o ouro, pois foi com uma delas que o Guilherme Paraense tornou-se campeão olímpico. Foi graças a essas duas armas que o Brasil conquistou as três medalhas na Antuérpia”, ressalta.

A informação, contudo, é rebatida por Valéria Paraense. “Eu já li em vários lugares sobre isso e essa história das armas emprestadas de fato existiu. Mas elas foram emprestadas para o Afrânio. Meu avô competiu com a arma dele”, afirma.

Seja como for, com arma própria ou emprestada, Guilherme Paraense brilhou acima dos rivais em sua prova e o Brasil viu surgir seu primeiro campeão olímpico.

A arma que Guilherme Paraense usou para conquistar o primeiro ouro do Brasil nos Jogos, bem como a medalha de ouro que simbolizou o triunfo na Antuérpia, estão com a mãe de Valéria, Oysis Paraense Ferreira, que não pôde ser entrevistada para esta matéria pois recupera-se de uma cirurgia.

Guilherme teve sete filhos, dos quais, além de Oysis, apenas um está vivo: Osiris Paraense, que mora em São Paulo. Ele também não pôde ser ouvido para a matéria por questões de saúde. “Tanto a arma quanto a medalha e um troféu que meu avô ganhou na Antuérpia estão na casa da minha mãe”, conta Valéria.

Retorno heróico
O desfecho da aventura de Guilherme Paraense e dos demais atletas da equipe de tiro esportivo do Brasil nos Jogos Olímpicos da Antuérpia 1920 não foi nada parecido com o início da empreitada.

A notícia da façanha da equipe de tiro na Bélgica chegou ao Brasil por meio de um telegrama vindo da Antuérpia e foi recebida como um feito monumental, retratado em jornais como uma proeza de grandes proporções. Com a fama vieram recompensas aos medalhistas olímpicos, como relata Afrânio da Costa.

“O retorno da equipe não foi mais no Curvelo, porém num navio decente, cheio de gente importante, com todas as passagens pagas pelo Governo Federal. Era um justo reconhecimento pelo memorável feito! Inúmeras autoridades políticas e desportivas e uma multidão curiosa aguardavam ansiosamente o desembarque da delegação no cais do porto do Rio de Janeiro para conhecer e abraçar o campeão e o vice-campeão olímpico”.

Seguiram-se homenagens de toda sorte aos medalhistas e Guilherme Paraense ocupou seu lugar entre os imortais do esporte brasileiro. “Ele me contava como tinham sido as coisas nas Olimpíadas, mas contava como um avô conta para uma criança. O que me lembro bem foi de um dia em que o Adhemar Ferreira da Silva (primeiro bicampeão olímpico do Brasil, que conquistou as medalhas de ouro no salto triplo nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, e em 1956, em Melbourne) foi lá em casa. Eles tiraram fotos, conversaram e até tirei uma foto com o Adhemar e o meu avô. Nem sei onde está essa foto hoje. Mas me lembro que o Adhemar era uma pessoa muito agradável. E era justo. Sempre que falavam das medalhas dele, ele dizia que a gente nunca poderia esquecer a medalha do meu avô, que tinha sido a primeira. Ele era muito gentil”, detalha Valéria.

“Houve também um encontro do meu avô com Maria Esther Bueno”, cita a neta, referindo-se à lendária tenista brasileira, dona de três títulos de simples em Wimbledon e quatro troféus de simples no US Open, além de 11 títulos de duplas no Aberto da Austrália, Roland Garros, Wimbledon e US Open.

“Ele era muito querido e era uma pessoa espirituosa. Brincava com os outros atletas e dizia: ‘Eu abri o caminho à bala para vocês em 1920’”, lembra Valéria. “Eu acredito que meu avô era um patriota acima de tudo. E que ficaria muito feliz por ver o Brasil sediando uma Olimpíada”, encerra a neta.

Luiz Roberto Magalhães

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