De forma unânime, competidores brasileiros destacam falta de distinção para quem vive do esporte e civis; “Sou da Paz” explica que tenta conter desvio de finalidade
Um dos esportes mais tradicionais das Olimpíadas, presente desde a primeira edição, o tiro esportivo é uma das esperanças do Brasil para conquistar medalhas no Rio 2016. Aliás, foi justamente neste esporte que o país garantiu seu primeiro ouro, com Guilherme Paraense, na Antuérpia, em 1920. Hoje, atletas de ponta como Felipe Wu, Cássio Rippel e Júlio Almeida, campeões em suas modalidades no Pan-Americano de 2015, vão representar o time brasileiro nos Jogos, em agosto. No evento-teste realizado na última semana, no entanto, os competidores desabafaram contra o que consideram um dos maiores problemas para o surgimento de novos talentos e uma maior competitividade deles próprios no cenário mundial: o estatuto do desarmamento.
Criada em 2003, a lei restringe o comércio de armas de fogo e munições com a prerrogativa de diminuir a violência e o número de homicídios no país. Sem entrar na discussão da eficácia ou não do estatuto para a diminuição desses índices, os atletas brasileiros reclamam de uma falta de distinção entre eles e o cidadão comum que busca ter uma arma para defesa pessoal. Para os competidores, deveria haver uma lei específica que os ajudasse na aquisição de equipamentos de uma forma menos burocrática e mais barata, já que boa parte deles é importada. Segundo eles, o tipo de armas que usam são muito diferentes do que os bandidos buscam. Sendo assim, não haveria uma justificativa de que poderia “cair em mãos erradas”.
– Atrapalha muito, porque ele (estatuto do desarmamento) não faz distinção. Ele foi feito para tentar evitar um problema de criminalidade, mas não há distinção para o esporte ali. Então acaba atrapalhando demais. Você acaba sendo tratado como se fosse um cara querendo comprar uma arma normal. Vamos ficar só nas armas olímpicas, que não são usadas no dia a dia. Uma pistola livre, que é uma arma que se carrega um a um, e é gigante a arma. Você não vai andar com uma arma dessas na rua, mesmo que você queira. E a lei não permite também que você ande com ela carregada. Essa é a diferença do atleta desportivo. Quando você tira um porte para andar com ela carregada, o atleta desportivo, mesmo a documentação em dia, não pode andar com a arma carregada. Se for pego com arma carregada está infringindo a lei. Então essa arma vai separada da munição sempre. Ninguém vai querer fazer um assalto com uma arma de competição. Não tem como. A 22 até poderia. Mas, se você tem dinheiro para comprar uma arma com 5 tiros, você vai comprar uma 9 milímetros com 15 tiros. Ou uma 38, que vai ter uma efetividade muito maior para fazer um assalto do que uma arma de competição – explicou Júlio Almeida.
Nas competições de tiro esportivo há pistolas de ar, pistola de tiro rápido, carabinas e espingardas de tiro ao prato. Nas de ar, a munição é o “chumbinho”. As carabinas disparam apenas um tiro por vez e as espingardas suportam, no máximo, duas munições, além de ambas serem pesadas (de 5 a 8,5kg). A única que – na opinião dos atletas – poderia ser alvo de bandidos para praticarem crimes seria a de calibre 22, usada no tiro rápido. Porém, a capacidade dela é de cinco munições, enquanto pistolas comuns, de 9mm, podem receber até 15 balas. Essa diferença entre armamentos esportivos e de defesa pessoal é o que move os competidores a pedirem uma flexibilidade maior na aquisição do equipamento.
– O estatuto do desarmamento acabou não fazendo diferença entre uma arma de competição e uma arma de fogo (para defesa pessoal). Há uma conversa entre a Confederação Brasileira de Tiro Esportivo e o Exército Brasileiro, que é quem controla a entrada de armamento no país, para modificar essa legislação. Hoje já é visto com outros olhos o atirador de provas olímpicas e quem quer comprar a arma para defesa pessoal ou mesmo desportiva mas para o tiro prático e não o olímpico. Mas o estatuto nos atrapalha. Eu não tive problemas por ser do Exército, então facilita bastante o trâmite e o ir e vir. Mas, para os amigos que são civis, eles enfrentam grandes problemas com isso – afirmou Leonardo Moreira, competidor na carabina e comentarista do SporTV.
Para poder ser registrado como atleta profissional de tiro esportivo, o cidadão precisa procurar uma das portarias do Exército específica para esta modalidade, que comporta ainda caçadores e colecionadores. Apesar dessa atribuição, a lei continua sendo regida pelo estatuto do desarmamento. A portaria serve apenas para centralizar a organização e o cadastro dos registros, além da fiscalização e reavaliação para a concessão do porte, que deve acontecer anualmente.
Entenda o que é preciso para ser um atleta de tiro
Como o comércio nacional é bastante reduzido, os produtos – tanto armas quanto as munições – não costumam ser de alta qualidade e forçam os competidores de ponta a buscarem opções no mercado internacional. Daí, há um problema com impostos de importação, depende da ida dos atletas ao exterior – já que para importar esse tipo de equipamento, a operação pode levar até dois anos – além de exigir o CII (Certificado de Importação Internacional), registro diferente do CR (Certificado de Registro), que é feito junto ao Exército nacional e exigido portar e competir com armas de fogo.
– A dificuldade maior é de importar equipamento. É muito caro, e a munição também é importada. A gente não usa nada nacional. É bem complicado. A gente aproveita as Copas (do Mundo de Tiro Esportivo) para renovar o equipamento. São pecinhas. A arma já é importada. Vem para o Brasil, a gente faz a legalização, fica tudo certo. Mas as peças são caras. Para importar num processo normal, leva muito tempo. A gente aproveita nas Copas e compra as peças. Para fazer a importação normal da arma, leva muito tempo, dois anos, dois anos e meio – afirma Rosane Budag, que compete na carabina.
Além de tornar o esporte mais caro, o estatuto do desarmamento, conjuntamente ao estatuto da criança e do adolescente, impede que menores de 18 anos possam empunhar uma arma de fogo. Assim, os atletas brasileiros se veem em grande desvantagem para os competidores internacionais, que começam no esporte desde crianças ou muito novos. Para que um menor de idade possa atirar, os responsáveis precisam fazer uma requisição judicial e, muitas vezes, esse pedido é negado por juízes, ainda que a intenção esteja relacionada com práticas esportivas.
– Em vez de falar armas, deveríamos falar em equipamento, que é o mais correto. Em outros países, se começa na mais tenra idade. Aqui, é 18 anos a idade mínima para um atleta poder desempenhar sua atividade de tiro, e para adquirir a arma é com 25 anos. Isso é idade para estar no pódio de competições internacionais. Existem atletas com idade inferior que praticam o tiro esportivo, mas com liminares na justiça, algo muito demorado – explicou Durval Barlen, presidente da CBTE.
Especialista no assunto e ferrenho crítico do estatuto do desarmamento, Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil e autor do livro “Mentiram para mim sobre o desarmamento” afirma que o atual cenário desmotiva o surgimento de novos atletas no país, algo que não acontece em outros esportes. Para ele, em tese, o atleta de tiro até tem uma legislação diferente, já que ele responde a uma portaria específica do Exército. No entanto, essa mesma legislação acompanha o que vale para os civis – o estatuto do desarmamento – e cria uma série de dificuldades não só para quem já pratica mas para o surgimento de atiradores esportivos.
– O ideal é que a legislação para o colecionador e para o tiro esportivo fosse realmente diferenciada de quem tem uma arma para sua defesa. Que houvesse uma isenção de impostos, se desse estrutura para o atleta poder ter facilidade maior de fazer o seu esporte. O tiro esportivo não tem a peneira natural do esporte. Vamos pegar o futebol como exemplo: qualquer bairro tem um campo, uma escolinha, milhões de jovens praticam informalmente até chegar ao fim da peneira, que é quando você vê aqueles que vão se destacar e virar craques. O tiro já começa restrito, muito pequeno. A chance de você ter um atleta de ponta é mínima por conta disso – afirma Bene.
A discussão dos atletas de tiro se restringe ao âmbito esportivo e não questiona a dificuldade em todo trâmite até poderem portar uma arma e competir. Emerson Duarte, que disputa as provas de pistola de 25m, explica que a ideia era, além dos incentivos fiscais, fazer com que jovens se iniciassem no tiro com pistolas de ar, por exemplo, que é uma das modalidades do esporte.
– Essa legislação, que rege os atiradores, colecionadores e caçadores é diferente, mas continua muito restritiva. Ela poderia ser um pouco mais incentivadora, principalmente para os jovens, adolescentes… Por que eles não podem iniciar numa pistola de ar, por exemplo, num estande, supervisionado? Eu nunca soube de um acidente num estande de tiro, desde que eu comecei a atirar. Eu acho que tem que separar bem o tiro esportivo do tiro de defesa. Quando desvincular a pistola que eu tenho, que é esportiva, e não de defesa… a população tem que entender essa diferença, além de aperfeiçoar mais essa portaria do exército, que melhorou, mas ainda pode ajudar o desenvolvimento do esporte – pediu Emerson.
o que é preciso para ser um atleta de tiro esportivo?
A primeira coisa que uma pessoa que deseja competir esportivamente no tiro é obter um certificado registro para poder usar um equipamento controlado pelo Exército – é o caso das armas de fogo. Para conseguir um CR é preciso:
– Identificação através de documento com foto e comprovantes de residência e acervo;
– Idoneidade: certidões negativas de antecedentes criminais fornecidos por Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral;
– Comprovação de capacidade técnica, atestado de aptidão psicológica e autorização judicial;
– Assinatura em termo de compromisso, ciência e responsabilidade, além de uma declaração de filiação a uma entidade de tiro desportivo ou de caça;
– Pagamento de taxa.
A capacidade técnica é comprovada por um instrutor de tiro registrado no Exército ou pela Polícia Federal e deve ser comprovada anualmente. A aptidão psicológica é expedida por um psicólogo registrado no respectivo conselho de classe e é preciso ser renovada a cada três anos.
Além disso, há uma restrição para o tipo de armas que os atletas podem comprar. Sendo assim, é proibido que os esportistas comprem os seguintes equipamentos (que não condizem com nenhuma prática esportiva):
– Armas de calibre 9×19 mm.
– Armas de calibre 5,56 mm NATO (5,56×45 mm, .223 Remington.)
– Armas de calibre 5,7x28mm.
– Armas curtas semiautomáticas de calibre superior ao .454.
– Armas curtas de repetição de calibre superior ao .500.
– Armas longas raiadas de calibre superior ao .458.
– Espingardas de calibre superior a 12.
– Armas automáticas de qualquer tipo.
– Armas longas semiautomáticas de calibre de uso restrito, com exceção das carabinas semiautomáticas nos calibres .30 Carbine (7,62 x 33mm) e .40 S&W.
“sou da paz” diz que se preocupa com desvio de finalidade
Instituto responsável pela criação do Estatuto do Desarmamento, o “Sou da Paz” concordou com reclamação dos atletas em termos de um excesso de burocracia na questão da compra de armamento e munições. No entanto, Bruno Langeani, coordenador da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, afirma que o problema parte mais de uma falta de pessoal do Exército, que cuida desta portaria referente ao competidores, do que da lei em si.
– Nossa avaliação é que grande parte das reclamações não são tanto pela legislação em si, e mais por conta de falta de pessoal do Exército (instituição responsável pelos atiradores) para processar os pedidos no tempo adequado. O Sou da Paz tem destacado que é importante diferenciar as necessidades destes atletas competidores (para as quais concordamos com facilidades na compra de armas e munições) da categoria ‘Atirador’ do Exército. Isso porque muitas pessoas buscaram na categoria de atirador uma modalidade de obtenção de arma com maior facilidade. Assim, o registro de atirador no Exército, que em 2003 teve 123 novos registros, cresceu exponencialmente, passando para 73 mil em 2014. Diversos destes, segundo relatos do próprio Exército, não frequentam estande, nunca se inscrevem para competições, etc – disse, por e-mail, Bruno Langeani.
Para o Instituto, a preocupação maior é que, em caso de uma flexibilização maior para os competidores, uma parte da população, mal intencionada, poderia se aproveitar desta brecha para comprar armamentos e munições de forma legal.
– Este desvio de finalidade preocupa, pois gera desvios que comprometem a segurança. Neste sentido, também é papel das federações ajudar a separar os atletas que competem e são ranqueados dos demais que buscaram o cadastro apenas para acessar uma arma com mais facilidade. Assim, em resumo, acreditamos que é perfeitamente possível conciliar um controle que seja preocupado com a segurança do país com o incentivo a este importante esporte, que é motivo de orgulho e rende medalhas há tanto tempo para o Brasil – escreveu.